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PÁGINAS EXPANDIDAS

 

 

“[...] no mundo tudo existe para chegar a um livro.”

                                                    Stéphane Mallarmé

 

O que eu tive foi vertigem luminosa quando entrei pela primeira vez no ateliê da UQ! no Parque Guinle, RJ, a convite dos editores Lucia Bertazzo e Leonel Kaz.

O indescritível desfolhado sobre a mesa... era o livro do Zerbini, quase pronto.

Matrizes estonteantes fundindo natureza e arte, como se um vento outonal acabasse de varrer para dentro a matéria-prima do bosque.

Numa das salas, Lucia em ação, manuseando impressoras enormes descartava impressões imperfeitas (na cor) dos relevos ultra coloridos de A Revelação do Avesso do Gullar, e nós dois maravilhados, achando tudo perfeito.

 

E lembro-me da vez que não deixei um livro em paz até cair da mão em pleno vernissage: tonta de Krajcberg, não do vinho, tentei evitar a queda, mas a taça esquecida na outra mão respingara na página.

Ninguém teria notado por enquanto... a cor sangue-espiritual sobre a flor iridescente de Franz Krajcberg, mas eu me denunciei.

E como não estremecer diante de uma onda negra 70 vezes única? Acetona e pigmento sobre dois metros de altura de papel de bambu –– o infinito dobrado em várias partes. A pintura-objeto de Pedro Cabrita Reis, inspirada no poema Cântico Negro, de José Régio, exige a humildade cósmica dos que observam asteroides.

Verdadeira viagem espaçotemporal tais páginas expandidas, esvoaçando por entre os dedos, indo e vindo pelas paredes.

E até hoje ninguém disse palavra sobre meu pequeno desastre, e ainda fui convidada para novos projetos quando a Lucia Bertazzo criou a Urucum Editora, em Lisboa.

 

O primeiro projeto Gramática do Instante e do Infinito (2020), de José Eduardo Agualusa, primeiro com fotografias do autor. Yara grávida de Kianda, imagens em papel de arroz, poemas em papel de bambu, envoltos em luz de ilha e cores de capulanas (tecidos moçambicanos) dão vontade de nascer em África.

 

Em seguida, Lucia e eu, numa grata parceria (no pior da pandemia) começamos a série de edições que chamei de “Objeto de Poeta e Livro de Artista”, sempre obra gráfica sua, com curadoria e textos meus.

As muitas maneiras de dizer “eu te amo” (2020), partiu de um caderno para desenhar, que dei de presente ao Gullar, em nosso primeiro encontro, e que voltou de presente um Caderno de Desenhos tempos depois. Agora reproduzido fidedignamente 90 vezes, fac-similado, impresso sobre o mesmo papel (Canson C à grain) do original, aramado e tudo, e um livro meu, em costura japonesa, dentro de um estojo com laço e aroma de jasmim.

Subverti a ordem: os desenhos contam a história, e as memórias são ilustrações.

 

No ano seguinte, fizemos Pós-Mondrian, de Ferreira Gullar (2021). O livro-objeto tem origem na instalação imersiva “Sala3D”, assinada por mim, a partir de uma fotografia rara do poeta trabalhando em sua sala, de Tomás Rangel. Ampliada às medidas parede, com dez colagens do Gullar emolduradas e penduradas na imagem.

Lucia viu a exposição e se interessou em reproduzir as colagens. Agora expostas em dois álbuns sanfonados (leporelos) minuciosamente recortadas a laser, respeitando o corte manual do artista, num estojo prateado e diferente em cada exemplar, e brilha!

Tudo está resolvido, no retângulo, no losango, no campo radiante da cor. É de Mondrian a melhor definição de arte abstrata que conheço: “A abstração é mais fiel à realidade do que qualquer ilusão.”

 

No final do mesmo ano, lançamos Antes de Tocar o Céu, fotogravuras de Siron Franco e poemas de Augusto dos Anjos.

O desejo da editora de unir fotografias das sombras da instalação “Ressurreição” do artista ao “Monólogo das Sombras” do poeta, resultou em fotogravuras com ouro, em raríssimos 47 exemplares, em grande formato, com terra sobre a capa, envelopados em linho.

Considerando que o ouro sempre foi substância recorrente nas obras de Augusto e Siron, e a terra também, agora podemos ler, ver e tocar essas páginas como sombras do Ouro, de um mesmo Sol.

 

Outros projetos vieram do mesmo entusiasmo para novos formatos, como as 33 imagens, de Marco Tirelli (2021). Livro criado a partir de “Teatro da Memória”, instalação do artista na Bienal de Veneza de 2013, formada por desenhos, pinturas e esculturas.

Imagens 33 vezes misteriosas, cinematográficas, como as séries de suspense filosófico que não paramos de acompanhar e rever.

Formas da vida local do artista foram levadas... para uma espécie de terraformação em outro mundo.

Cada exemplar traz, além das 32 obras, um desenho original.

 

objetos allados (2022), poemas, assemblages e fotografias, fiz no tempo do luto, usando como base reproduções (giclée) de telas do Van Gogh e a companhia de um drone, que me ajudava a encarar os objetos pessoais do Gullar pela casa.

É a primeira vez que um drone participa da contextura de um livro de poemas.

O livro todo em minúsculas, enlutado, mas amarelo, alado para não pesar em tempos já tão duros sobre a Terra. Tudo bem resolvido em folhas soltas, dentro de uma caixinha entintada de amarelo. Leve assim.

 

O projeto Os Cadernos da Minha Vida, de Joana Vasconcelos, iniciado em 2021, abre este livro-catálogo e abrange todo o conceito editorial da Urucum.

50 cadernos únicos, com anotações, ideias, estudos e colagens da artista (com cartas de Valter Hugo Mãe especialmente escritas para cada exemplar) encontraram o suporte merecido para a grandeza da autobiografia visual de Joana.

Todo o experimentalismo e a excelência trazidos de obras anteriores; todos os materiais possíveis e inesperados, como azulejo, por exemplo, e cortiça, espelho e papel de parede, foram incorporados à ideia de mostrar a vida interior da grande arte, em grande formato.

 

Em sua curta porém intensa produção criativa a Urucum cresce acrescentando páginas ao texto da vida atravessando fronteiras no espaço-tempo desde as placas de argila, do papiro ao rolo de pele do volumem, o pergaminho e o codex, passando pela prensa de Sheng e Gutemberg, evoluindo até as obras gráficas de Miró e Arp, do Surrealismo ao Neoconcretismo brasileiro os materiais do escriba (há seis mil anos) continuam atuais por aqui, no epicentro da arte contemporânea: casca de árvore, terra, madeira, folha de palmeira e algodão.

 

A equipe Urucum congrega a família Bertazzo, a produtora Olivia Portellada, e eu, daqui dos longes e sempre por perto. E estamos todos muito honrados e alegres com a chegada do colecionador Sérgio Corrêa de Sampaio na vida da editora. Lucia sempre dá um jeito de pôr todo mundo em volta para trabalhar para o sonho de Mallarmé citado ali na epígrafe.

 

Jorge Luís Borges enunciou, que “Quando morrem, os escritores se transformam em seus livros. O que, pensando bem, não deixa de ser uma forma interessante de reencarnação.”

E quando temos a oportunidade de experimentar isso em vida: ir virando livro sem necessariamente ser eviscerado antes.

Até quando a morte se interpõe entre o original e uma solução futura, o coração posto na obra não será arrancado.

É desse reconhecimento à luz do dia que trata o livro de artista.

 

                                                                                                                  Cláudia Ahimsa

poeta e curadora

2023

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